sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Livre arbítrio

Hoje faz vinte e oito anos, seis meses, cinco dias e algumas tantas outras horas desde que fui condenado e aqui me encontro cumprindo uma pena que, a bem da verdade, ainda não me convenci se fiz por merecê-la. Dizem que é assim mesmo. Mea culpa, não é uma expressão muito ouvida por essas bandas e se porventura acontece, decerto o indivíduo já terá completado mais de dois terços de sua sentença; este é um processo longo, de evolução paulatina, onde cada um faz o seu próprio itinerário. Tenho procurado me ajustar às normas que me foram impingidas neste ambiente insalubre, soturno e pegajoso, onde até mesmo a mais ingênua das almas, que por aqui habita, preza por acatar; é uma questão de sobrevivência. Na verdade, às vezes tenho a nítida impressão de que este lugar é o verdadeiro limbo, sinto que estou a um passo do inferno. Almas pagãs, que não me deixam duvidar, são aqui em número quase que absoluto. É bem verdade que algumas delas já se encontram em estágio de passagem para um plano mais evoluído, mas essas são minoria. Ainda não tenho plena convicção em qual dos dois grupos me encaixo. Com frequência me questiono se a intensidade do crime e da pena que me imputaram, justifica a angústia e a revolta das quais não consigo me desvencilhar; se o veredicto procede ou se os verdadeiros culpados seriam aqueles inconsequentes progenitores que não me possibilitaram ter uma vida factual e profícua, nem me provieram com mecanismos suficientes para que um dia eu pudesse fazer as minhas próprias escolhas.

No início, logo após a condenação, fui apossado por uma sensação de que eu me encontrava em um barco desprovido de mastro e velas, à deriva num mar negro, agitado e tempestuoso, onde monstros-marinhos com suas grandes garras-metálicas investiam contra mim, cerceando de maneira taxativa o meu ímpeto de seguir a viagem que me foi previamente determinada. Até hoje, essa visão aparece e me visita com certa regularidade. Acredito que ainda terei a sua companhia por um longo tempo. É um verdadeiro pesadelo, mas urge a convivência porque de uma forma ou de outra, sinto que este é o caminho que vai me levar de encontro à minha verdade.

Em alguns momentos reflexivos, vêm à tona imagens que me são familiares: meu pai, minha mãe, meus irmãos, os amigos - na verdade não sei se realmente algum dia os tive - e até mesmo os momentos de intimidade que me foram subtraídos sinalizam como se tudo aquilo fizesse parte de uma realidade próxima, mas ao mesmo tempo efêmera. É um flashback que me conduz de volta a um tempo peculiar que eu deveria conhecer e paradoxalmente me leva a um universo até então inexplorado. São pensamentos recorrentes que alimentam o meu imaginário e mantém vivos os sonhos e esperança de uma liberdade desejada e ao mesmo tempo tão distante. Todo esse processo demora apenas uma fração de segundos, mas que no limbo em que eu vivo conta uma eternidade. Nessas horas é inevitável pensar sobre o tempo passado e as oportunidades perdidas. Determinados dias imagino situações que provavelmente teriam me marcado de forma significativa caso eu não me encontrasse nesse penoso processo evolutivo. Sei que viver assim é difícil, mas aprendi que a vida, mesmo em condições adversas, é soberana e tem que ser preservada.

Em outras ocasiões surgem lembranças de uma infância rebelde, da juventude irresponsável e o primeiro contato com as drogas; da descoberta do sexo e da primeira mulher amada e outras nem tanto; da bala perdida a mim dirigida pelo marido traído; dos bons tempos da faculdade; do dia da formatura com a presença da família e amigos confraternizando; do primeiro emprego e a demissão por justa causa; do casamento e os filhos que não vingaram; da infidelidade com o divórcio litigioso; da pensão judicial decretada e não cumprida; da prisão efetuada e o por fim o contato com as infelizes almas que me fazem companhia até os dias de hoje. É a história de uma vida que nem sei se ao menos posso dizer que vivi.

Por um breve tempo permaneço calmo e ligado a esse roteiro. Enfim, é o meu filme; há que se refletir sobre ele. Mas logo a seguir retornam à cena as malditas garras que estão sempre a me afrontar. Novamente o infernal barulho metálico coloca meus sentidos em alerta máximo e prontamente inicio uma luta feroz tentando preservar um pouco da vida que ainda me resta; puro instinto. Será o início do fim? Desta vez parece diferente. O monstro ainda está lá e a luta continua, mas agora consigo vislumbrar em meio àquele oceano, que um dia já teve seus dias de calmaria, uma luz difusa e escarlate. Avidamente nado em direção a ela, mesmo sem saber o que me espera. Após tanto esforço, sinto no corpo uma intensa dor que me dilacera a carne. Tento desesperadamente me livrar das garras, mas finalmente elas me dominam. O escarlate do oceano se intensifica, a minha visão turva e num ato extremo busco o ar que já começa a me faltar. Grito, mas a tentativa é em vão; ninguém me ouve. É o fim.

Anos se passaram sem que eu compreendesse com clareza a origem de todo esse processo. Hoje, a única certeza que tenho é o quanto eu gostaria de ter tido a opção de poder justificar a pena que me imputaram. Ao menos teria sido por livre arbítrio. Mas esse direito me foi negado quando vocês cometeram aquele criminoso aborto.


Obs: Este conto foi publicado originalmente no livro de antologia do Beco do crime –Ed. Multifoco (lançamento-Bienal do livro Rio de Janeiro-19/09/2009)

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